Seu calvário tinha começado antes. Pega furtando um celular, sua prisão não seguiu a lei. O proprietário do objeto não ligou para o 190, mas para um tio investigador da Polícia Civil. O tio atende pelo nome de Adilson Pires de Lima. Chegando ao local, ele deu um soco na costela da garota. Enquanto ela ainda recuperava o fôlego, enfiou sua arma na boca dela e a ameaçou. Na delegacia, foi recepcionada com um chute nas costas pelo investigador Sérgio Teixeira da Silva. Não é necessário olhar para uma adolescente de menos de 40 Kg e um metro e meio de altura para concluir que ela é uma adolescente. Provavelmente a delegada Flávia Verônica Monteiro Pereira nunca deve ter convivido com uma menina de 15 anos. Porque apenas isso explica a decisão dela de ignorar a cédula de identidade que a menor portava, e simplesmente prender a garota como se maior de idade fosse. Como na cidade de Abaetetuba, no Pará, não há cadeia feminina, as autoridades envolvidas decidiram colocá-la mesma cela que os outros homens. Logo na primeira noite, apenas algumas horas depois de entrar na cela, ela foi atacada por Beto Júnior Castro da Conceição. Mesmo com menos de 40Kg e 1,50 de altura, ela resistiu o quanto pôde. Se debateu, gritou, tentou lutar, mas foi arrastada até o banheiro da cela e estuprada ali mesmo. De acordo com a denúncia do Ministério Público sobre esse estupro, “A vítima gritou bastante, porém, como neste ambiente prevalece a lei do silêncio e os próprios presos tinham medo deste acusado, nada fizeram.” O segundo a atacá-la foi Rodinei Leal Ferreira, vulgo Cão. Era o mesmo modus operandi, a menina resistia enquanto podia, mas acabava subjugada. Para quebrar a resistência dela, os presos se saíram com um plano; confiscaram a comida que iria para ela, e só liberavam depois de uma “empanada”: quando a vítima estende um pano no chão e faz sexo em troca de algo. Os presos também a obrigavam a ficar longe da frente da cela. Uma estratégia para que alguém de fora percebesse a situação. Reparem que, todas a autoridades daquela cadeia sabiam que aquela garota estava lá. Não apenas sabiam como procuraram esconder, cortando o cabelo dela com um facão para que sua aparência ficasse mais masculina. Mesmo sendo estuprada diversas vezes ao dia, os presos não a deixavam em paz nem para dormir — e era comum que eles a acordassem a queimando com isqueiros, cigarros, e outras formas de tortura. Os autos da prisão em flagrante chegaram à mesa da juíza Clarice Maria de Andrade dois dias depois da prisão. A juíza poderia ter solicitado a remoção imediata da garota para uma penitenciária feminina, mas não o fez, assinou os papéis, e a manteve presa no inferno. 14 dias depois da sua prisão, a juíza Clarice ainda teve uma nova oportunidade de salvar essa menina. Ela recebeu um ofício do Tribunal de Justiça do Pará determinando a transferência urgente da garota para um presídio feminino em Belém. O documento dizia, “uma vez que não possuímos cela para o abrigo de mulheres, estando a mesma custodiada juntamente com outros detentos, correndo risco de sofrer todo e qualquer tipo de violência”. E aqui começa o jogo de empurra. A juíza disse que pediu a um assessor para encaminhar ofício. O fato é que o ofício não foi encaminhado e a menina permaneceu presa sofrendo todo e qualquer tipo de violência. A garota foi salva pela conselheira Diva de Jesus Negrão Andrade. Após um preso ser solto, ele informou a um parente o que estava ocorrendo, e este, por sua vez, ligou para Diva. Desesperada, Diva localizou o pai da garota, que morava em outra cidade. De posse da sua certidão de nascimento, foi até a delegacia, e explicou ao delegado que não apenas a garota estava sendo estuprada, como era menor de idade. Nada disso comoveu o delegado Antônio Fernando Cunha, que afirmou que ela só sairia dali com uma ordem judicial. Ao menos, Cunha achou por bem transferi-la para a sala dos escrivães. Na tarde seguinte, quando o pai finalmente chegou a cidade, o delegado Rodolfo Fernando Valle Gonçalves afirmou que a garota havia fugido. Nesse momento, o caso começou a ganhar repercussão. Enquanto procuravam a garota nas ruas, a imprensa começava a aportar em Abaetetuba. Até a CNN fez uma reportagem exibida para o mundo inteiro sobre o absurdo que ocorria no interior do Brasil. A adolescente foi achada três dias mais tarde no cais da cidade quando já era manchete nos jornais. Perguntada se tinha fugido, ela negou. Disse que policiais civis, os mesmos que a prenderam, haviam a tirado da delegacia, levado ela até ali, e a ameaçado de morte se ela não saísse da cidade. Hoje, 16 anos depois desse fato, a garota vive nas ruas. Ela recebe dois salários mínimos de indenização do Governo do Pará. A violência que ela sofreu foi tão brutal que todos que cruzam seu caminho a descrevem como reservada, explosiva, e paranóica. Ela também se tornou viciada em crack e se prostitui para sustentar o vício. Os delegados Antônio Fernando Botelho da Cunha, Rodolfo Fernando Valle Gonçalves, Celso Iran Cordovil Viana, Danieli Bentes da Silva e Flávia Verônica Monteiro Pereira foram exonerados. Nenhum deles efetivamente sequer chegou perto de ir para a cadeia. Os investigadores de polícia Adilson Pires de Lima e Sérgio Teixeira da Silva foram absolvidos por falta de provas. Os presos “Cão” e Beto Júnior permanecem presos por causa dos estupros. Eles foram os únicos que a garota conseguiu reconhecer em meio ao inferno que viveu. Honestamente, não duvido que ele simplesmente tenha bloqueado tudo que ocorreu depois da primeira noite. A juíza Clarice Maria de Andrade foi aposentada compulsoriamente em 2010. Em entrevista a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), ela descreveu esse período da seguinte forma, “Fui afastada de uma forma violenta. Fui praticamente arrancada do cargo. Foi uma coisa que mexeu com toda a família. Fiquei doente, enfrentei um câncer e meu marido perdeu o emprego. Mas graças a Deus, temos um Deus poderoso e retomamos nossa vida”. Em 2012, o STF anulou a decisão. A considerou excessiva. Uma vitória dos advogados da Associação de Magistrados (que, sim, bancaram toda a defesa da juíza). Em 2016, o CNJ a “puniu” de novo: ela teria que ficar dois anos recebendo o seu salário, mas sem trabalhar. Findada sua punição, ela hoje atua na 1ª Vara Criminal de Belém. Esse é o Brasil 🇧🇷 Por Ivanildo Terceiro